Por Thiago Goulart – Jornalista e Professor
A arte cumpre o papel de transformação social. As canções têm o poder de cativar, gerar reflexão, denunciar, extasiar. É isso que nos torna humanos. Algumas letras permanecem indeléveis no tempo e formam o arcabouço do legado humanístico. É o caso de Strange Fruit – uma canção contra o racismo.
Aqui você pode escutar a música Strange Fruit, interpretada por Billie Holiday.
Letra e harmonia
Apesar de não terem nascido juntas, letra e harmonia fornecem, no campo da forma e do conteúdo estético, percepções sensoriais e subjetivas àqueles que as usufruem.
As reações, a partir da audição de uma música, podem ser diversas. Ao tomar contato com Strange Fruit, cantada por Billie Holiday, um travo permaneceu na minha boca. Fui, então, procurar compreender o contexto daquele som que tanto me impactou.
Impressões e contexto
Início de 1939. Local: o palco de um dos incontáveis clubes noturnos do badalado bairro nova-iorquino Greenwich Village, o recém-inaugurado Café Society Downtown. Billie Holiday tinha apenas 24 anos. Instrumento: voz. E a canção interpretada era Strange Fruit.
Tal é a força da harmonia, letra e o vínculo da canção, que poucos cantores ousaram proferir os versos em público. Além disso, a música foi proibida nas rádios da África do Sul durante a era do apartheid.
Caso semelhante também ocorrera nas gravadoras, já que a própria Columbia havia se recusado a gravar Strange Fruit pela voz de Lady Day, apelido dado pelo saxofonista Lester Young.
É evidente que a canção estava destinada a ser gravada e, Billie, como sua “proprietária” encontrou um pequeno selo chamado Commodore Records (ver anexo 4) via Milt Gabler, produtor musical, que resolveu gravá-la, lançando mais um grande disco na carreira.
A partir dos primeiros versos entoados (“Southern trees bear a strange fruit, / Blood on the leaves and blood at the root…” – Árvores do Sul dão uma fruta estranha, / Folha ou raiz em sangue se banha…”) até a última palavra da canção, a plateia sentia-se absorta, numa espécie de insensibilidade física causada após sofrer inúmeras pancadas no corpo.
Um ponto comum na reação dos espectadores era o fato de, após o término da música, ser nítida a presença de um doloroso silêncio, mas também a compreensão da bofetada e da força dramática de Billie Holiday.
Após a execução da música, aplausos angustiados.
Música estranha no jazz
A própria história do jazz confunde-se com o ato de sobrevivência daqueles músicos e cantores que acreditavam em seu poder catártico. O livro “Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção”, do jornalista norte-americano David Margolick, traz uma relevante pesquisa sobre a força e o papel transformador que uma canção pode alcançar, alterando e afetando a realidade cotidiana das pessoas.
Seria Strange Fruit jazz?
Ainda mais um tema tão delicado como linchamentos, ocorridos com frequência no sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil, e que persistiram anos depois. Como curiosidade, o livro revela alguns dados assustadores fornecidos pelo Instituto Tuskegee. Entre 1889 e 1940, 3.833 pessoas foram linchadas em território norte-americano, sendo que 90% desses assassinatos ocorreram na região sul.
A letra de Strange Fruit toca justamente no cerne dessa questão brutal. Não raro, era comum suceder ao linchamento a exposição dos corpos pendurados em árvores, gerando, morbidamente, uma atmosfera festiva, além de ter como cúmplices as autoridades locais.
Os linchamentos ocorriam em resposta a uma série de crimes, dentre eles assassinatos, roubos, estupros, mas também por motivos fúteis, como insultar ou falar acima do tom ao dirigir-se a uma pessoa branca, um gracejo, não desviar de brancos na calçada (o negro devia, por prudência, descer do meio-fio para a rua).
Nasce uma voz
Quando foi apresentada a Billie Holiday pelo então proprietário do Café Society, Barney Josephson, a pedido do compositor Abel Meeropol (sob o pseudônimo de Lewis Allan), a letra pareceu ter causado nela um certo estranhamento.
Por outro lado, ocorreu-lhe a percepção aguda da incumbência e responsabilidade de cantar uma música tão especial.
Não é por menos. Com apenas 24 anos, Holiday carregava o peso de séculos nas costas. Na infância, por exemplo, fora rejeitada pelo pai, que não a reconheceu. Na adolescência, havia sido abandonada inúmeras vezes pela mãe errática até ser encaminhada para um lar de crianças negras rebeldes.
Posteriormente, foi para um prostíbulo, no qual ouvira pela primeira vez a cantora de blues Bessie Smith e o lendário trompetista Louis Armstrong. Essa audição teria deixado, provavelmente, marcas em Billie. Tanto que, aos 14 anos, começou a se apresentar nas boates e cafés do Brooklyn, Queens e Harlem, como forma de ganhar alguns tostões sem precisar lavar chão e latrinas em bordéis.
É em 1933, portanto aos 18 anos, que a lírica e dramática cantora – a partir dos anos 40, Billie começa a dramatizar mais as letras, como sua grande influência Mabel Mercer – oficializa sua carreira ao lado do futuro rei do swing, Benny Goodman.
Os primeiros passos para o sucesso
Com Goodman, a musa do jazz gravou seu primeiro disco como crooner da orquestra do clarinetista. Entretanto, esse ainda não seria seu disco particular, já que não era a protagonista do álbum.
Com a competência das grandes cantoras, Billie Holiday, a partir daí, alçou grandes voos, principalmente ao ser descoberta pelo então jovem crítico e produtor musical John Hammond, que convenceu a Columbia a gravá-la em 1933.
Aliás, Hammond foi fundamental para colocá-la entre os seres imortais do cancioneiro da música americana, ao fazer as históricas gravações com o pianista Teddy Wilson entre 1935 e 1942.
No fim dos anos 30, Billie Holiday já era uma presença muito forte no cenário musical. Sua temporada no Apollo Theater, no Harlem, e as apresentações (1939 e 40) na primeira boate integrada – brancos e negros podiam assistir aos espetáculos lado a lado – de Nova York, o Café Society, foram triunfais. Foi justamente nesse night club que Holiday lançou Strange Fruit, dando início ao mito.
A força de uma música
Segundo Margolick, acredita-se que o estupor incitado pela canção seja o “despertar para a realidade do preconceito racial e para o poder transformador e redentor da arte, sendo o começo do movimento pelos direitos civis americanos”.
Tal é a força da harmonia, da letra e o vínculo da canção, que poucos cantores ousaram proferir os versos em público. Além disso, a música foi proibida nas rádios da África do Sul durante a era do apartheid.
Caso semelhante também ocorrera nas gravadoras, já que a própria Columbia havia se recusado a gravar Strange Fruit pela voz de Lady Day, apelido dado pelo saxofonista Lester Young.
É evidente que a canção estava destinada a ser gravada e Billie, como sua “proprietária”, encontrou um pequeno selo chamado Commodore Records (ver anexo 4), via Milt Gabler, produtor musical, o qual resolveu gravá-la, lançando mais um grande disco na carreira.
Num estúdio situado na esquina da Quinta Avenida com a 55th Street, no dia 20 de abril de 1939, Billie Holiday fez a gravação – com duração de quatro horas – acompanhada por sua trupe: Sonny White no piano, trompete de Frankie Newton, Tab Smith no sax alto, Kenneth Hollon e Stan Payne no sax tenor, violão de Timmy Melin, baixo de John Williams e Eddie Dougherty na bateria.
Segundo a estudiosa Angela Davis, “Strange Fruit devolveu o elemento de protesto e resistência ao centro da cultura musical negra contemporânea”, eternizando-se, assim, o libelo antirracista.